quinta-feira, 2 de julho de 2009

Em Paris - João Paulo Cuenca



Ainda sou um forasteiro, eu e minhas horas de caminhada pelas ruas curvas, retas vesgas de mão tripla cortadas por uma mixórdia de faróis e buzinas, pelos becos de pedra e por ruelas de quinhentos anos que escorrem escuras até o Sena, onde gárgulas olham sobre os meus ombros, tiram estranhas conclusões e sopram absurdos nos meus ouvidos, por grandes avenidas nubladas de árvores nuas, e pelas incontáveis linhas de metrô que se contorcem sob a cidade como serpentes ocas de concreto, umas sobre as outras. Em todos os lugares que se possa estar, a oferta de cafés, bares e restaurantes é caleidoscópica – centenas de milhares de letreiros de néon sobre portas art déco, aquários esfumaçados de palavras que não compreendo. Escolher em qual deles entrar é uma impossibilidade. Vago com as mãos nos bolsos cheios de moedas, olhando de fora para dentro, escapando do meu reflexo nos vidros sujos, imaginando como seria estar em alguma mesa, vou e volto, premio minha indecisão com passos pelo frio, uma procissão por quarteirões desconhecidos, e, depois de algumas horas escolho algum lugar para sentar. Então abro esse caderno e peço uma taça de vinho, e outra, e depois peço uma garrafa do vinho da casa (um bordeaux vagabundo sensacional), e fico enchendo minhas horas com o vermelho do vinho e com o som das vozes e de uma música ordinária que sai das caixas de som. É um sábado à noite e o bar na Rue Decartes está lotado, assim como todos os outros buracos da Rue Mouffetard e do Quartier Latin. Para os franceses, cheguei tarde (uma da manhã), e estamos na hora mágica em que as moças estão docemente alteradas pelo álcool, sendo convencidas pelos homens sentados à sua frente a trepar. Pelo panorama, vejo que terão sucesso. Eles cochicham nos pequenos ouvidos das moças, que riem, curvam o pescoço para o lado e despenteiam os cabelos, soltando abismos nos coques dos cabelos pretos. Sobre as francesas: são definitivamente loucas. Choram pelas calçadas onde pisam forte como cavalos xucros, bufando, enforcadas pelos cachecóis. Nos cafés, todas as manhãs, perdem o foco do olhar e das sobrancelhas arqueadas para o nada, misturadas como se guardassem uma multidão enfurecida dentro de si. E fumam, fumam compulsivamente, inspiram a fumaça para dentro do seu corpo, dos pés até os pêlos dos braços, e depois exalam um pouco delas junto com uma nuvem cinza escura – e fico sem saber o quanto do cinza pertencia a elas ou ao cigarro. Agem com intensidade disfarçada – são blasées nos gestos, mas estão à beira de um grito histérico que iria desmontar todos os penteados e catedrais de Paris. Todas parecem atrizes de teatro. Uma mulher francesa deve ser um pequeno e delicado inferno. (E pensando melhor na idéia que eu tinha das francesas, agora vejo que você parece muito mais francesa do que a maioria das francesas.) Os homens, como as moças, são muito bonitos e tristes, como diria Hemingway, do jeito que só um jovem francês pode ser. Mas não escapam da herança genética masculina e, apesar do porte de galã, são umas bestas de olhar canino, balançando os braços para os lados enquanto andam, falando alto e cuspindo pelas calçadas com cheiro de mijo. Todo mundo aqui se veste bem e penteia (ou despenteia) cuidadosamente os cabelos. Todos, é claro, menos eu. Sempre que são na rua, lembro que preciso comprar um sapato novo e um sobretudo decente. Mas acabo gastando todo o meu dinheiro com comida, museu, café e doses cavalares de vinho tinto. Ontem fez sol e muito frio, e amanhã vai fazer mais – frio e sol. Para mim, um dia de sol com temperatura próxima de zero é como um sonho estranho, sem sentido, misturado. Espero continuar acordando para dentro do sonho, espero conseguir fazer sentido em breve. Volto a escrever. Mais e, espero, melhor da próxima vez. Com amor, João.